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Foto do escritorEuclides Santos Mendes

“Central de Memórias” e o tempo audiovisual

Por: Euclides Santos Mendes[1]


Em 1996, o conjunto habitacional Vila Serrana II se estabelece na periferia de Vitória da Conquista, na Bahia, em meio à luta de seus moradores pela casa própria. Em 1997, o novo bairro torna-se locação para “Central do Brasil” (1998), filme dirigido por Walter Salles que descortina o horizonte da cidade natal do cineasta Glauber Rocha no processo de revitalização do cinema brasileiro. O bairro conquistense e o filme que celebrizou internacionalmente sua paisagem uniforme de casas populares são símbolos de uma busca de futuro e um reencontro com a memória de um país em transformação.

Cartaz: Cristiano Martins
Cartaz: Cristiano Martins

Nesta travessia no tempo, o curta-metragem “Central de memórias” (2021), dirigido por Rayssa Coelho e Filipe Gama, reinventa a paisagem da Vila Serrana, amalgamando fotografias e imagens em movimento do passado e do presente com lembranças de moradoras do bairro que vivenciaram (e vivenciam) a busca por novas perspectivas na cidade em expansão. Edelzuita Silva Souza, Lea Santos Lemos, Lucrécia Aguiar Teles e Jeane Aguiar Teles narram suas memórias de luta pelo direito a ter um teto todo seu e de encontro com a invenção cinematográfica de um Brasil profundo materializado simbolicamente em “Central do Brasil”.

Realizado durante a pandemia de Covid-19, entre fevereiro e agosto de 2021, o curta é feito com a matéria viva da memória coletiva. Na sua expressão audiovisual, “Central de memórias” é resultado de uma experimentação de linguagem que valoriza o tempo, criando imagens visuais e sonoras que se articulam na coexistência da virtualidade do passado com a atualidade do presente.

A chegada da equipe de produção de “Central de Brasil” a Vitória da Conquista potencializa uma experiência de vida comunitária, integrando os moradores da Vila Serrana ao cotidiano do set de filmagens e desmistificando os bastidores do cinema. Alguns moradores figuram diretamente em “Central do Brasil”, como Francisco Cláudio da Silva Sousa, que interpreta um carteiro num filme regido por uma escritora de cartas: Dora (Fernanda Montenegro).

O encontro da ficção com a realidade é motivo de encantamento para moradores do bairro, mas também para cinéfilos e realizadores audiovisuais de Vitória da Conquista, como Jorge Melquisedeque, que registrou, com o cinegrafista Renato Fernandes, os bastidores da realização de “Central do Brasil” na cidade. Esse material audiovisual foi posteriormente utilizado por Esmon Primo e Marcelo Lopes na concepção do curta “Central Conquista Brasil: os 7 dias da criação” (2002), cujo roteiro surgiu a partir de crônicas daqueles dias cinematográficos escritas por Jorge Melquisedeque (“Central do Brasil – uma visão intrauterina” e “Fragmentos de um discurso cinematográfico”).

“Central de memórias” também utiliza trechos visuais e sonoros desse registro dos bastidores de “Central do Brasil”. O curta é, de certa maneira, símbolo de um futuro possibilitado pelos caminhos abertos por Jorge Melquisedeque, que fundou, em 1992, o programa de extensão da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) preciosamente denominado Janela Indiscreta Cine Vídeo, semente potente da relação peculiar que a cidade de Glauber estabelece com o cinema.

Dessa relação peculiar também vieram estudos capitaneados pela pesquisadora e professora Milene Gusmão, eventos como a Mostra Cinema Conquista, criada por Esmon Primo, e o curso de graduação em Cinema e Audiovisual da UESB, do qual o codiretor de “Central de memórias”, Filipe Gama, é professor. Aliás, parte da equipe de realização do curta é oriunda do curso de Cinema e Audiovisual da UESB. A codiretora Rayssa Coelho é graduada em História pela UESB e também se formou nesse ambiente singular da cinefilia, tornando-se produtora do Programa de Extensão Janela Indiscreta e codiretora, também em parceria com Filipe Gama, de outro curta e de um site homônimo sobre a potência da memória que emana do cinema: “Coleção Preciosa” (2020-2021, www.colecaopreciosa.com.br), que trata do acervo cinematográfico que Ferdinand Willi Flick (1934-1997) reuniu, durante 52 anos, em Vitória da Conquista.


[1] Jornalista, pesquisador e professor, Euclides Santos Mendes faz pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMLS), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Vitória da Conquista.

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